Short story (O comissário)
O senhor comissário da polícia era alto, forte, e dono dum exuberante bigode preto.
Homem de meia-idade, usava a farda azul marinho com aprumo, apesar de os nossos olhos serem atraídos, e se deterem, antes de mais, no lustroso cassetete em cujo manejo, dizia-se, era exímio. Era o tempo da ditadura, e o homem, no seu conjunto, tinha forma de respeitinho; ou de medo.
O senhor comissário era casado com Celina. Esta, por sua vez, era maravilhosamente pequena, não iria além do metro e meio. Loira, de pele lisa e rosada, cifose dorsal acentuada, tão simples e modesta quanto simpática.
Curiosamente, a sua única e evidente vaidade concentrava-se nas mãos, cujo arranjo nunca descurava, apesar de ser ela que fazia todo o trabalho doméstico.
Não havia filhos, mas Celina tinha um cão, pequeno como ela, que abusava dos agudos ao ladrar.
Quando era verão e as janelas estavam abertas, na hora do senhor Sousa chegar a casa para almoçar, ouviam-se, por aquelas travessas do burgo velho, os desenfreados, repetidos, repenicados e altissonantes beijos do comissário na bochecha rosada da Celina.
Lá em casa éramos todos cúmplices daquele expansivo afecto que nos entrava fresco e brejeiro pelas janelas.
Quem diria? Entreolhavamo-nos e sorríamos, silenciosos, quase embevecidos.
Quando este alvoroço acalmava e a vida retomava a pacatez provinciana, o que voltava a sair pelas janelas abertas da vizinhança eram os aromas das comidas alentejanas, mais os seus indisfarçáveis temperos igualmente doces e quentes
Era hora de também nós irmos almoçar.
E estava tudo bem.