Na morte da tia (short story)
Eram os últimos dias, talvez horas, de vida da tia.
Ana Maria estava sentada junto da cama do hospital e olhava a cabeça branca da velha senhora adormecida; sentia uma enorme serenidade naquela hora de despedida e, por isso mesmo, percebeu que a tinha perdoado.
Aquela tinha sido a tia que a tinha ajudado financeiramente quando foi preciso, mas também a única que a tinha humilhado sempre que lhe foi possível.
Era uma mulher difícil, dada a ódios, ciúmes, excepções entre iguais e neuras.
Apesar dos seus mais de 90 anos, era, desde os vinte, financeiramente independente, amealhou um bom pecúlio e nunca casou. Houve, porém, na vida dela, um eterno amor com um namoro intermitente.
No tempo em que a distância entre o norte e o sul do país era enorme, e no tempo em que as mulheres não saíam de casa dos pais senão para a igreja no dia do casamento, a tia tinha, aos vinte e poucos anos, invertidos os pontos cardeais da sua vida e rumado à terra desse grande amor. Dele, murmurava-se-lhe o nome, mas pouco mais se sabia.
Meses depois, voltou. Sozinha. Nunca mais saiu de casa dos pais, mas o namoro intermitente durou quase toda a vida. Ele aparecia, estavam felizes alguns dias, e voltava a partir. Passavam-se anos sem notícias, até que ele reaparecia. Voltava sempre, partia sempre, e também ele nunca casou.
Que se passaria naquela relação, era a grande interrogação da família. A tia nada dizia mas ficava zangada durante meses.
Já perto dos noventa anos, um dia disse.
-Sabes, Ana Maria, tive de ir ao hospital fazer uma raspagem. É que eu sou virgem e desenvolvi uma infecção “lá atrás”.
Inevitavelmente, Ana Maria pensou que o sexo, ou melhor, a falta dele, deve ter tido um papel importante naquele insucedido namoro, e lembrou-se do maravilhoso romance de Ian McEwam, Na Praia de Chesil, (2007) em cuja badana se lê: “...uma história de vidas transformadas por um gesto não feito ou uma palavra não dita.”
Depois da morte da tia, Ana Maria soube que havia um testamento. Nele, a parte de leão ia para uma outra sobrinha e para Ana Maria ficava uma pequena casa e uma pulseira de ouro de que ela gostava muito quando ainda era menina.
Mal tomou posse do novo património, Ana Maria vendeu a casa pelo primeiro preço que lhe ofereceram. Depois vendeu a pulseira de que já não gostava e comprou um anel de que gostava.
Ao sair da ourivesaria, com a mesma serenidade que sentiu à beira da cama da moribunda, Ana Maria percebeu que, se já tinha enterrado a tia, tinha agora acabado de cremar a humilhação tantas vezes sentida.
Sorriu, sacudiu o cabelo, e pisou firme rumo a casa, sentindo que, de alguma maneira, também ela era uma sobrevivente. Não o somos todos, afinal?