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Última Paragem

O blog do bicho do mato

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Última Paragem

11
Jul24

Flocos de neve

Maria J. Lourinho

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"E estará esta nova visão do mundo que diz que precisamos de um psicólogo sempre à mão ligada à “geração floco de neve”, os que nasceram entre os anos 1990 e o início dos 2000?

...

A expressão começou por se referir aos millennials “demasiado convencidos do seu próprio estatuto de pessoas especiais e únicas para serem capazes (ou se darem ao trabalho) de lidar com as provações e dificuldades normais da vida adulta”, e passou a aplicar-se a toda a geração.

...

terá sido Claire Fox quem, dez anos depois, popularizou a expressão “geração floco de neve” no livro I Find That Offensive!, referindo-se à sensibilidade exacerbada, ao “sentido inflacionado de singularidade e sentido injustificado de direito” de uma geração “demasiado emocional, facilmente ofendida e incapaz de lidar com opiniões contrárias”.

Bárbara Reis, Público

Finalmente percebi: eles chegaram à idade de  entrar no mundo do trabalho e inundaram as nossas lojas, cafés, restaurantes, supermercados, centros comerciais e call centers.

O cliente quase tem de pedir desculpa por existir; não tem direito a contrapor, antes tem de concordar, agradecer e, se possível, venerar quem o atende. Não nos pedem um tratamento respeitoso e igualitário, não, exigem-nos silêncio e modéstia.

Não se sabem exprimir correctamente, mas adoram sugerir que não percebemos porque somos burros.

Não têm nenhuma flexibilidade, e quando tentamos argumentar que a flexibilidade é fundamental na vida, nem sequer entendem de que falamos, e assobiam para o lado.

É uma geração do caraças.

Oxalá a próxima seja mais cordial, já para não dizer "normal", porque parece que este também já é um termo cancelado - dizem que a normalidade não existe nem nunca existiu, mas a mim parece-me, apenas, que ela já não existe.

Foto do Google

09
Mar24

Leitura e liberdade

Maria J. Lourinho

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"Porque é que ler conta, e muito, para a liberdade?
Ler, uma actividade em extinção, por muito que as livrarias estejam cheias de feéricas capas, por muito que se diga a gigantesca asneira de que ler num ecrã de telemóvel é o mesmo que num livro (experimentem a Montanha Mágica ou a Guerra e Paz…), ou que a “geração mais preparada” pode fazer um curso superior sem ler um livro (bem, dois, três e já é muito), e por aí adiante. Falar e escrever bem também estão em extinção, com a redução do vocabulário circulante a pouco mais do que os antigos 140 caracteres do Twitter, agora 280 no X, o que vai dar ao mesmo – a enorme dificuldade de expressão que se vê todos os dias e por todo o lado. Qual é o problema? É que quem não lê, não fala e não escreve decentemente, é menos livre, mais facilmente manipulado, menos eficaz em coisa alguma importante, mais fácil de ser mandado e de não mandar nem em si próprio. Ou seja, repito, menos livre."

Pacheco Pereira, Público, 9 Março 2024

02
Mar24

Uns centésimos da sociedade

Maria J. Lourinho

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Um pequenino retrato, ou uma foto tipo passe, como se queira, do Iniciativa Liberal.

O seu interesse centra-se em? Uns (muito) poucos por cento da sociedade portuguesa.

"Rui Rocha (Iniciativa Liberal) vai às empresas falar com gestores e ignora trabalhadores
Na segunda-feira, Rui Rocha, líder da IL, visitou o porto de Sines — reuniu-se com a administração, não falou com os trabalhadores. Na terça-feira, em Beja, quis saber dos agricultores — mas fechou-se num gabinete com a direcção da Associação de Agricultores do Sul, que integra empresários. Na quarta-feira, foi a Oeiras para conversar com Vasco de Mello, líder do grupo José de Mello, ali na condição de presidente da Business Roundtable Portugal, associação que junta os CEO dos maiores grupos empresariais portugueses (como a Galp ou a Altice). Esta quinta-feira, visitou a Navigator — uma das maiores exportadoras do país —, mas também só conversou com gestores. Rui Rocha está em campanha há cinco dias: dinamizou acções para ouvir administradores, gestores e representantes dos grandes grupos económicos — nunca para falar com os trabalhadores."

Público 1 Março 2024

Estamos conversados sobre a  baixa de impostos, não é? Já sabemos quem serão os premiados.

 

 

07
Fev24

O que eles nos podiam dizer

Maria J. Lourinho

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Da esquerda para a direita, o que eles nos podiam dizer:

- Olá, eu sou o Pedro, gosto muito de mim, e acho-me capaz de fazer muitas coisas.

- Olá, eu sou o Luís e ainda não percebi bem porque estou aqui nem o que sou capaz de fazer.

- Olá, eu sou o Rui Primeiro e não gosto de mim – ADORO-ME!!!

- Olá, eu sou o André. Saiam-me da frente que vou partir isto tudo. Com a ajuda de Deus, claro.

- Olá, sou a Mariana. Queria muito chegar aqui, e a falar assim baixinho talvez não perca por muitos.

- Olá, sou o Paulo. Até eu estou espantado por estar aqui.

- Olá, sou o Rui Segundo. Gosto disto e sou teimoso. Dê por onde der, FICO!Depois...logo se vê.

- Olá, eu sou a Inês. Sou sociável, gosto de ir a todas as festas, aceito todos os convites.

 

(o “boneco” roubei-o ao Público)

25
Jan24

Se não sabe, não vote

Maria J. Lourinho

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A jornalista Bárbara Reis escreve hoje no Público sobre a inusitada situação que o jornal verificou ontem, quando milhares de pessoas foram ler nele uma notícia velha de há 3 meses.

Escreve ela.

"Um anúncio fez rir e pôs pessoas a ler notícias.
E fiquei a pensar: o que levou tantas pessoas a irem ler uma notícia velha e factual, o primeiro de muitos artigos que se escreveram nos últimos meses sobre essa incrível descoberta?
...
A resposta é simples: o número 75.800 euros está na nova campanha publicitária do Ikea.

Se estou a pensar bem, milhares de pessoas viram a campanha ficaram curiosas e quiseram saber o que significava aqule valor no cartaz. Ou seja, milhares de pessoas não sabiam dos 75.800 euros, uma das razões que levaram António Costa a demitir-se, que foi, digamos, a notícia do ano."

E digo eu: Estes milhares, e os que nem sequer foram averiguar o que seria, também votam no dia 10 de março.

A iliteracia política de tantos portugueses é assustadora. Por isso mesmo, há muito que deixei de apelar ao voto pura e simplesmente, como se todos soubessem o que estão a fazer.

Agora, acho mesmo que quem não está informado não deve votar. Deve ficar na sua casinha, desinteressado do voto como do resto.

Votar é um direito, um dever, mas também uma responsabilidade cívica que muitos milhares não estão habilitados a assumir.

Agora digo: se sabe, em consciência, o que vai fazer, vote; se não sabe, não vote.

Assine um jornal. Qualquer um.

 

30
Dez23

Hoje, também quero acreditar

Maria J. Lourinho

 

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Quase, quase, no fim de um ano mauzito, sinto-me, frequentemente, à espera de um ano mauzão, e de um futuro sem futuro. Estas palavras da escritora Lídia Jorge, em entrevista dada hoje ao jornal Públicio, são uma espécia de inesperado agasalho em dias de gelo.

E com elas termino o ano, desejando a todos que, afinal, 2024 não seja o ano mauzão.


"Acredito que há coincidências surpreendentes que salvam as coisas. Não é que salvem a vida individual, mas a humanidade. Mesmo neste momento infernal que estamos a atravessar, tenho ideia de que qualquer coisa muito boa tem de acontecer, porque há uma espécie de lei de saturação do mal. Até na Segunda Guerra Mundial, sobre o cadáver de tanta gente, houve o futuro. Custa muito crer nisto, mas a História é isso mesmo: uma catástrofe contínua, com intervalos."

03
Jul23

Ignorantes que somos

Maria J. Lourinho

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Pequeno excerto da entrevista a Carlos Fiolhais no Público de 1/7/2023, infelizmente só para assinantes, sobre a viagem que o telescópio espacial Euclides está prestes a iniciar, para estudar milhões de galáxias durante 6 anos.

 

O que é isto da matéria escura e da energia escura?
Infelizmente, a matéria escura continua a ser um grande mistério, tal como a energia escura. São os dois “escuros” para nós ainda e dois dos maiores mistérios da física actual. São enigmas com origem no espaço que têm desafiado a nossa capacidade de entendimento.

...

Há sinais que vêm do espaço, nos dois casos, que nos dizem que há qualquer coisa ainda incompleta e que as nossas teorias físicas não são ainda a última palavra e, portanto, precisamos de saber mais e de compreender melhor.

Para dar uma ideia da extensão da nossa ignorância, em números redondos, a matéria normal — que compreendemos muito bem, feita de átomos e partículas que constituem a matéria de que nós somos feitos — não passa de 5% da matéria e energia total do cosmos. Os outros 95% são constituídos pela energia escura (cerca de 75%) e pela matéria escura (cerca de 20%).

23
Mai23

Queria escrever isto...

Maria J. Lourinho

...
"Cavaco, cínico e inteligente como é, sabe quando desferir golpes. A velha guarda do PSD entra no partido à hora em que a cavalaria costuma chegar nos filmes.

Há, por isso, no regresso de Aníbal, um pouco do instinto dos grandes generais. O PSD precisa de sair da engonha e aí veio ele de bandeira em riste e de pistola em punho para lhe dar ânimo."

Manuel Carvalho, no editorial do Público, ontem, 22 maio 2023

16
Mar23

É tão lindo o privado

Maria J. Lourinho

Acontece hoje a primeira greve de enfermeiros nos hospitais privados.

Informação útil: ordenado mínimo, bruto, de um enfermeiro no SNS, 1268 euros, no privado 1080 euros.

Horário semanal no SNS, 35 horas, no privado 40 horas.

As coisas têm piorado e prometem continuar a piorar nos hospitais privados.

Força, valentes, trabalhar para ricos é muito agradável, mas paga mal.

Caso para usar o velho ditado que até Saramago citou - "pensou que se benzia e partiu o nariz".

06
Mar23

Eu queria dizer isto, mas ele já disse

Maria J. Lourinho

O ensino público está há meses perturbado pelas greves. O sistema judicial adia milhares de diligências por força da paralisação dos oficiais de justiça. As urgências médicas da Área Metropolitana de Lisboa tiveram de ser reduzidas por falta de meios, e em zonas como as que são servidas pelo Hospital Beatriz Ângelo, médicos, autarcas e utentes falam com saudades da parceria público-privada que o Governo descartou. No serviço de estrangeiros, desiste-se de emitir autorizações de residência por falta de capacidade de resposta. A CP desdobra-se em greves a cada semana e em atrasos impensáveis sempre que opera.

...

Não se vislumbram indícios de que a tempestade seja passageira. Os sindicatos radicalizaram posições. Não há margem para o diálogo nem para a negociação, onde todos cedem. O Governo tenta apaziguar o conflito e fica à espera de que a tempestade passe. Deixa andar. Age como se tudo fosse normal. Não é. A escola pública pode perder o ano. Os tribunais ficam mais caóticos. Os hospitais afundam-se. O apego à democracia dilui-se. O PRR não faz milagres num país fracturado.

O Governo adora o Estado, mas testemunha a sua pior crise. Não se espera que proíba greves. Não se espera também que prolongue esta atitude passiva. Tem uma missão espinhosa: cumprir a lei e defender o interesse colectivo. Há momentos críticos em que é preciso clareza e coragem. Este é um deles. Pior de tudo, é viver esta crise grave como se nada fosse.

Manuel Carvalho, Público, 6 Março 2023

01
Mar23

Sócrates, o nosso

Maria J. Lourinho

Eu e o João Miguel Tavares, sem nos conhecermos, embora nos cruzemos com alguma frequência na rua, temos por hábito discordar.

Mas, lá de lés-a-lés, concordamos. Melhor, eu concordo com ele.

Ontem, no seu artigo de opinião no Público, com o título Sócrates: arranjar novos crimes, que os velhos vão prescrever, explica como se tem arrastado na justiça este caso. E escreve também:

"José Sócrates foi detido em Novembro de 2014 – há oito anos e três meses. Foi acusado em Outubro de 2017 – há cinco anos e quatro meses. Foi pronunciado em Abril de 2021 – há um ano e dez meses. E passado todo este tempo, (...) o processo está bloqueado numa rede de recursos. As primeiras prescrições começam em 2024. Quando irá Sócrates a julgamento? Uma resposta cada vez mais provável é: nunca.”

O que o JMT não escreveu, mas creio que ambos acreditamos, é que Sócrates, no fim disto tudo, ainda vai processar o Estado e nós teremos de lhe pagar uma choruda indemnização. Estou fartinha de o dizer.

Oxalá que Deus NÃO me oiça!

 

15
Fev23

Eu acreditei no Pai Natal

Maria J. Lourinho

No jornal Público de 9/02/2023, li um artigo sobre as condições de trabalho dos trabalhadores do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia da Fundação EDP.

Leio:

Jornadas de trabalho de nove horas em pé, 15 minutos de pausa para almoço, "assédio laboral", cortes nos horários e nos rendimentos, uma equipa de 24 pessoas "a falsos recibos verdes". 

Muitos destes trabalhadores são estudantes, que trabalham para pagar os estudos.

Quando internamente fizeram algumas reivindicações, ouviram:

‘Vejam lá, porque se continuarem a fazer isto cortamos os vossos horários para metade, e assim já não têm razões para pedir cadeiras e pausas de almoço'”, aponta Marta Antunes.

Pedir uma cadeira, como acontece em qualquer museu do mundo, e uma pausa para almoço, é ser dum perigoso extremismo, é um pedido estapafúrdio para estes (ir)responsáveis - a responsabilidade social das empresas é "cena que não lhes assiste".

Passa-se isto numa empresa que só nos primeiros nove meses de 2022 teve 518 milhões de lucro, que criou uma fundação que tem muito dinheiro e construiu aquele espaventoso e caríssimo edifício à beira-rio.

Nada contra o lucro e o edifício (que é belo), tudo contra os comportamentos de quem exerce o seu pequeno poder de modo vil e mesquinho.

Eu ainda sou do tempo em que acreditámos que o país havia de ser justo e com tendência igualitária. 

Um bocado antes, também acreditei no Pai Natal.

Artigo do jornal aqui

30
Jan23

Zona de desconforto

Maria J. Lourinho

Entre Setembro e Outubro do ano passado, acompanhei no jornal Público um caso de plágio do jornalista Vítor Belanciano.

Este, que escrevia artigos muito apreciados, foi acusado, e com verdade, por uma leitora, de plagiar um artigo do jornal El País, publicado uns meses antes. (Veio depois a saber-se que havia antecedentes). A leitora escreveu, denunciando o plágio, ao próprio jornalista, ao director do jornal e ao provedor do leitor.

Todos meteram os pés pelas mãos, empurrando de uns para outros e até desvalorizando o assunto. Felizmente a leitora não era mole e nunca largou “o osso”. Talvez eu seja preconceituosa, mas creio que , se o denunciante fosse um homem, haveria mais agilidade e lisura no tratamento do assunto.

Finalmente, e para abreviar, o jornalista saiu do jornal, despedindo-se dos leitores com um artigo dúbio, e o provedor também foi substituído um tempinho depois. Se assim não fosse, a credibilidade do jornal caía no esgoto.

Quem lê livros e jornais, estudou e foi avaliado, não pode deixar de ficar muito chocado com os casos de plágio que mancham inapelavelmente o nome de qualquer escriba que o faça. Plágio é um roubo como qualquer outro, só que da propriedade intelectual.

Sei que toda a gente erra, toda a gente tem deslizes aqui ou ali, uns mais graves, outros mais ligeiros. Antigamente, situações destas causavam vergonha e o prevaricador saía da circulação por um bom tempo, fazia um período de nojo a que se sentia obrigado.

Ora, o que vejo hoje? Não sei se todos fazem o mesmo, mas Vítor Belanciano passeia pelo país, fotografa-se, publica-se, e (assim) publicita-se no Instagram.

Encontrei ontem, nesta rede social, uma sua fotografia, em que nos olha de frente, descontraído, tranquilo, respirando bem estar.

Enfrenta a câmara sem disfarce, olha de frente para mim como quem diz: olha lá, ó moralista de pacotilha - estou aqui, gamos uns textos e pensamentos aos meus colegas, sou um bocado aldrabão, mas não me envergonho nem me arrependo.

Não faço mais do que viver a vida como ela é no século XXI. Sou apenas moderno.

Finda a observação, senti que tinha entrado a pés juntos na minha zona de desconforto e vim-me embora.

14
Jan23

Uma greve, como todas as lutas justas, não pode cair no vale tudo.

Maria J. Lourinho

Excertos do editorial do Público, hoje, por Manuel Carvalho, com que muito concordo

...
Esta greve começa a fraquejar com a falta de proporcionalidade. Os professores estão numa guerra de poucos custos para os próprios e com danos máximos para a escola pública. A greve self-service é uma estratégia de valentões: perde-se a remuneração de um tempo lectivo e sem verdadeiramente ir à luta consegue-se fechar uma escola. É guerra de guerrilha, embora sem heróis românticos. Os professores estão condenados a perdê-la e a delapidar o seu capital de prestígio.

...

Os professores têm de ser valorizados, os seus poderes na escola e no sistema têm de ser reforçados, as suas carreiras têm de ser dignas e justas. Têm de ser vistos como a mola fundamental para a coesão, a justiça social e o progresso do país. Estamos de acordo.

A justeza destas reivindicações não autoriza golpes sindicais, nem greves oportunistas. Ao seguirem esta via da greve às pinguinhas, que causa danos profundos e prolongados com custos mínimos para si próprios, os professores alimentam um estigma que os perseguirá. Uma má notícia para os seus interesses, uma péssima notícia para a educação.

06
Mai21

Leituras VII

Maria J. Lourinho

António Guerreiro (Público), a pôr o dedo na ferida em que ainda ninguém pôs

...

Em tempo de reparações e de assumpção de injustiças colectivas, ainda ninguém veio reivindicar que seja reparado, ou pelo menos nomeado, o crime cometido sobre as crianças e adolescentes na escola de antigamente, quando as sevícias faziam parte dos métodos pedagógicos. Quem frequentou a escola ou os liceus nesse tempo (acho que o 25 de Abril constituiu, também aqui, uma cesura, mas não sei se foi imediata e generalizada) sabe bem que muitos professores tinham métodos sádicos e comportamento de carrascos. Não sou certamente o único que tem uma memória da escola primária como uma instituição de terror, um lugar a que sobrevivi a custo, mas que me deixou marcas que a memória reactiva com mais força à medida que o tempo passa. Percebo hoje que essa escola era profundamente medíocre (quando a frequentei tinha apenas uma muito vaga noção de que era odiosa) e, dela, havia os que se salvavam e os que submergiam (bem sei que estas palavras são uma ilegítima e perigosa citação, mas como deixar de ver essa escola como um “espaço concentracionário”?). Aí, a arbitrariedade era absoluta e os castigos infligidos às crianças eram semelhantes aos de uma colónia penal. Numa época em que não havia o controlo que há hoje e as crianças iam em grupo, a pé, para a escola, alguns “fugiam à escola” e ficavam escondidos, até à hora do regresso a casa, para escaparem à tortura. Recordo alguns nomes e rostos de colegas “fugitivos”, que depois tinham que enfrentar os pais; e que eram vistos como potenciais delinquentes e socialmente falhados. Recordo-os e interrogo-me se eles nunca pensaram em pedir contas pelo mal que lhes fizeram, por terem sido condenados ao falhanço por gente criminosa. Interrogo-me também se eles, já adultos, conseguiram cruzar-se com esses antigos professores sem os insultarem ou sentirem uma enorme aversão. E pergunto: como foi possível, já depois de ter desaparecido este ambiente escolar, manter a complacência em relação a professores que foram agentes do terror? A pedofilia é um crime que não prescreve; uma escola que pratica a pedocriminalidade deveria ser julgada. Se os ditos professores agiam assim por obediência a uma concepção da escola e da pedagogia instauradas como ideologia do Estado, então o Estado devia, em algum momento, ter pedido desculpa às vítimas e assumir a responsabilidade que não poder ser pedida aos carrascos que tinha ao seu serviço. As vítimas, uma enorme multidão, têm direito, pelo menos, a uma pedido oficial de desculpa. Mesmo que em muitos os casos o mal cometido seja da ordem do irreparável.

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