Hoje foi assim
É mais forte o que as une que o (muito) que as separa.
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É mais forte o que as une que o (muito) que as separa.
Tribo mursi, Etiópia
Neste tempo de pouca roupa, observei, com curiosidade, a hiperdecoração dos corpos que me passavam diante dos olhos.
Tatuagens grandes, pequenas, médias, de (quase) corpo inteiro, ou as que quase só nos espreitam de algum local mais recôndito, pestanas postiças que parecem leques, lábios com micropigmentação que lembram corações adoentados e sobrancelhas tão feitas a régua e esquadro que mais parecem um trabalho saído duma aula de geometria.
Porém, o meu maior espanto sempre aconteceu com as unhas - enormes, com decorações singelas ou bizarras são, em ambos os casos, elementos externos que dificultam o bom desempenho das mãos.
Nesta era cada vez mais digital, as mulheres ficam com dificuldade em digitar. Não é estranha a opção?
A continuar assim a moda, ainda chegaremos aos hábitos dos nativos africanos que metiam discos no lábio inferior, como o da imagem. Nunca percebi como falavam ou comiam, o que me causava infantil aflição quando via as imagens da colecção de cromos "Raças Humanas".
Excessiva, feia, antinatural, kitsch, assim é a moda feminina deste final de quarto de século.
Felizmente, agora, a moda também é o que cada uma de nós quiser. Para mim, ninguém definiu melhor elegância que o designer Armani.
Perguntado o que é para ele uma mulher elegante, respondeu: é aquela que, quando entra numa sala, ninguém dá por ela mas, quando sai, toda a gente pergunta quem era aquela mulher.
Procurei sempre fazer da opinião de Armani uma norma de vida. Mas já não se usa, eu sei.
Quando olho para as manifestações de professores nas ruas, vejo um mar de mulheres.
Quando olho para a entrada para as reuniões dos seus sindicatos com o ministro, vejo um ajuntamento de homens.
Assimetrias? Sim, há muitas.
Calhou olhar pela janela e vê-las.
Duas mulheres ainda novas estão paradas a conversar; carregam casacos, malas e lancheiras. Por várias vezes, a linguagem corporal indica que se vão separar, mas não, ainda há coisas para dizer.
Por fim, envolvem-se num longo e genuíno abraço.
Sei, exactamente, o que estão a dizer:
Gostei tanto de te encontrar! Também eu! Havemos de marcar um cafezinho para pôr a escrita em dia com mais tempo. Isso! que boa ideia! Liga-me! Vou ligar, sim!
Não o farão. Não têm tempo.
Joana estudou aos tropeções no Liceu Francês em Lisboa. Ao terminá-lo, emigrou para estudar em França numa escola profissional privada. As aulas começaram em Outubro e Joana tem um um estúdio para morar sozinha. Ao fim de um mês, teve saudades da família (e dos amigos), apanhou um avião e veio passar 3 dias em casa.
Marina não acabou o secundário. Teve um filho, que deixou com a mãe, e emigrou para a Bélgica, onde vive o pai. Arranjou trabalho a embalar produtos vendidos online. Ainda não tem casa e não conseguiu vir ver o filho no Natal com medo de que, sendo tempo de lhe renovarem o contrato de trabalho, a sua ausência pudesse prejudicá-la.
Sabemos que Portugal é um país muito desigual, cada vez mais desigual.
Para as mulheres creio que é sempre pior.
Se alguma mulher me disser que não encontra em si um grama da chata da Olive Kitteridge, eu digo logo que não acredito.
…”Henry – disse. - Eles fazem anos de casados hoje. Dão-se bem, mas ela é burra, tal como eu pensava. Estão ambos a fazer terapia. - Hesitou e olhou em volta. - Não te preocupes com isso, Henry. Na terapia, a culpa é sempre da mãe. Tenho a certeza que sais de lá incólume e a cheirar a água de rosas.”
Ed. Alfaguara
Comemorando-se o centenário de Saramago, a atribuição do prémio com o seu nome tem tido mais publicidade dos mcs. Comecei a reparar nas imagens dos antigos laureados e só via homens. Fui confirmar e aí está: 12 premiados e só duas são mulheres, ambas brasileiras. Pergunto-me: não haverá escritoras mulheres que preencham os critérios para "a coisa" ser um pouco mais paritária? Se calhar, não, que sei eu?.
Mas lá que é estranho, é!
Era bonita, jeitosa, alegre e apetecível.
O marido cobria-a de jóias, peles e doenças venéreas.
Conto dezenas de mulheres sozinhas na praia.
Homens, nem um!
Há mil e uma maneiras de viver só.
A das mulheres parece ser mais corajosa e assumida. Será?
Eu tenho uma amiga que se chama Helena.
Nunca a vi, mas há anos que nos acompanhamos nas redes sociais.
Também praticamente não sei nada dela; sei que vive entre dois países, que gosta de livros (como eu) que gosta de viajar (como eu), que tem pelo menos uma neta que adora e acompanha quanto pode.
A Helena gosta do que eu escrevo e incita-me a fazê-lo. Há poucos meses, a Helena descreveu-me com um sentido de observação e uma generosidade de que, creio, mais ninguém foi capaz até hoje. É perspicaz, inteligente, ponderada, tolerante. Quando eu não sou ponderada e tolerante, a Helena não gosta, mas releva porque é minha amiga.
É maravilhoso saber que, para lá do monitor está alguém por quem nutrimos uma genuína amizade e que esta é retribuída.
Se for alguém que não conhecemos, é quase mágico.
A Helena faz hoje anos. Não sei quantos, mas não faz mal. Eu quero que ela faça muitos e que permaneça assim comigo, e eu com ela.
Parabéns, Helena, e obrigada pela amizade. E por estar aí, onde quer que seja.
Esta é uma história verdadeira em que apenas os nomes foram alterados.
Josefa, Esmeralda, Ilda, Maria e Conceição, todas viveram nos anos de 1940. Mais velhas ou mais novas, a nenhuma foi estranho o rescaldo da Segunda Guerra Mundial e o salazarismo, com o seu cortejo de racionamentos, medos, carências e sacrifícios, num tempo em que, sem qualquer vislumbre de protecçao social, as pessoas estavam entregues a si próprias.
Josefa e Esmeralda eram irmãs, e Conceição era cunhada de Josefa.
A filha mais velha de Josefa, Joana, casou com Xavier, que era filho de Maria e irmão de Ilda.
Quando Xavier adoeceu com tuberculose, o jovem casal teve de deixar uma promissora vida na capital e de regressar às origens.
Doença e desemprego eram, e são ainda, causas maiores de pobreza, humilhação e sofrimento, caso não se tenha uma rede de apoio para amortecer a queda.
A rede física e psicológica deste casal foi formada pelas cinco mulheres inicialmente nomeadas.
Era preciso comprar penicilina, novo e caríssimo fármaco, para salvar Xavier.
Para isso, e sem hesitações, Ilda, a irmã de Xavier, vendeu todo o seu ouro e Maria, mãe de Xavier, vendeu não só o ouro, mas também a máquina de costura, um bem caro e precioso para as mulheres da época, quantas vezes comprado com muitas e sacrificadas prestações.
A mãe de Joana, mandava tudo o que podia para a alimentação e a tia Conceição, dona da casa que o casal arrendava, pagava do seu bolso a renda da casa ao próprio marido, sem que este desconfiasse da tramoia.
Quando Xavier melhorou mas ainda não tinha trabalho, e saía um pouco ao domingo à tarde, muitas vezes a tia Esmeralda, subrepticiamente metia-lhe no bolso uma nota de 20 escudos para as suas necessidades – tabaco, café e jornal, as necessidades mínimas de um homem naquele tempo.
Um verdadeiro complô de mulheres tomou conta do casal e salvou-o, deixando os homens nas suas vidas e na sua ignorância. Ou, pelo menos, elas assim acreditavam.
8 de Março é o Dia Internacional da Mulher.
Este ano, celebro-o homenageando estas minhas antepassadas, mulheres de fibra, generosas e lutadoras de que muito me orgulho.
A minha mãe referia-se-lhe apenas por Antónia. Falando comigo, chamava-lhe Dona Antónia.
Esta era a forma que ela tinha de me mostrar o seu desprezo por certas formas de vida, mas também a necessidade de respeitar todos.
Dona Antónia vivia na nossa rua, no tempo em que o casco velho da cidade era a totalidade do mundo para os seus habitantes.
Era na rua que os rapazes brincavam aos polícias e ladrões, aos cowboys, ou jogavam hóquei em patins sem patins, apenas com sticks manhosos e uma bola pequenina.
As meninas não participavam nesses brincadeiras. Ficavam à janela olhando os jogos dos rapazes, cumprimentando quem passava (sempre os mesmos) e apreciando o incansável trabalho das formigas por baixo da janela de peito do rés-do-chão.
Dona Antónia, que ali vivia sozinha, era recatada mas, por vezes, ao final da tarde, com a lida da casa feita e arrumada, também assomava à janela e por ali se deixava ficar um bom bocado, numa lassidão sensual e bem tratada.
O cabelo, a começar a ficar grisalho, apresentava-se sempre impecavelmente apanhado numa “banana”, os lábios levavam um ligeiro toque carmesim. Nas poucas vezes que saía, Dona Antónia usava, invariavelmente, saia travada, blusa ou casaquinho, e sapatos de meio salto. Na mão, apenas as chaves e o porta moedas, como quem pensa – não me demoro. E não se demorava.
Presumo, hoje, tantos anos passados, que nunca saberia a que horas chegava, ou sequer se chegava, o lavrador alto, de chapéu e bota rasa, que metia a chave à porta com indisfarçável ar de dono da casa e de todo o seu recheio, pois que tudo ali era pago e mantido por ele.
As bruxas do burgo velho, iguais às que existem em toda a parte e gostam de sair de noite, diziam que o cavalheiro bem apessoado que alugava um quarto na casa ao lado fazia umas surtidas nocturnas que terminavam a deslizar para dentro da porta da dona Antónia.
É certo que em todas as vidas há bocados duros de roer e outros de puro prazer, mas gozar assim com o poderoso macho latifundiário? Não, não acredito. Nem nunca acreditei em bruxas.