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Última Paragem

O blog do bicho do mato

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Última Paragem

12
Set22

Flashback

Maria J. Lourinho

Um dia, há muitos anos, o colega mais desejado do curso, assim do nada, convidou-me para ir com ele ouvir free jazz no Hot Club.

Gosto de jazz, mas do free jazz não gostei muito.

Gostei, isso sim, da companhia, e divertiu-me muitíssimo a ciumeira manifestada no dia seguinte por uma mão cheia de mulheres.

Que será feito do António?

 

28
Mai21

Uma memória

Maria J. Lourinho

Do rosto não me lembro bem, só sei que era moreno, mas não esqueci o seu corpo pequeno e roliço que às vezes me dava colo.

Andava depressa, com passinhos miúdos, sempre conversando à nossa frente.

Era minha tia-avó Zélia, de sua graça.

Casada, tinha duas filhas já adultas o que, ao tempo, era pouco. Talvez por isso, quando ouvia alguém lamentar uma mulher pobre por ter muitos filhos, despachava a conversa dizendo:

- Não tenho pena nenhuma dela. Tenho pena de mim e do meu marido que estamos fartos de fazer sacrifícios para ter só duas. Era, convenhamos, prosa arrojada para o seu tempo.

Quando a bisavó morreu, ela, talvez por ser a mais nova, instalou-se com o marido em casa do pai, para tomar conta dele, dos seus pertences e suas necessidades.

A casa do bisavô era perto da minha e, com frequência, a minha mãe mandava-me lá fazer “recados”

Aos meus olhos de criança pequena, aquela casa era mais ou menos uma gruta do Ali Babá, cheia de tesouros e mistérios.

A sala, percebo-o hoje, podia ser uma ilustração dum catálogo do século XIX, cheia de floreiras, canapés, mesa grande, mesas pequenas, guarda-loiça, jarras, molduras de prata lavrada etc., mas o que mais me fascinava era o abajur do candeeiro pendurado sobre a camilha, todo feito de franjas de missangas que baloiçavam e tiniam ao menor sopro, enquanto projectavam sombras dançarinas nas paredes pintadas de um verde desmaiado.

Depois da sala, e a caminho da cozinha, havia a casa das salgadeiras, sombria, sem janelas, gelada de inverno e fresca de verão.

Ao atravessá-la, estugava o passo, ou corria, talvez. O serzinho que eu era não gostava daquele lugar. Mas era necessário passar por ele para desembocarmos na luminosa cozinha, com o seu grande fogão de lenha, a comprida mesa de madeira ao centro, o poial dos alguidares da loiça, os armários embutidos nas paredes e os tachos de arame para as matanças do porco.

Abrindo a porta do fundo, saía-se para o quintal onde, pela primeira vez, vi uma galinha a voar para o telhado do alpendre.

No primeiro andar, entre quartos e saletas, continuávamos no século XIX, mas o que mais me fascinava era a casa de banho, em tons de rosa, e muito avançada para a época.

A tia Zélia, junto com a Carlota, tomava conta daquilo tudo.

A particularidade deveras engraçada desta tia-avó é que ela, ao falar, trocava C por T e G por D.

Lembro, até hoje, certa vez em que a vi amedrontada, quase em fuga, apontar e dizer:

- Está uma talocha ali na tortina.

Ou de uma outra vez, quando lá voltei, depois de ter batido com o nariz na porta à primeira, ela me dizer mal me viu: logo talhou eu ontiadora não estar tá.

Porém, para mim, tudo isso era normal, inclusive ouvi-la dizer (e só muitos anos volvidos ficou anormal) que tinha de ir espreitar o fodão, ou que já se ouvia o carro dos bombeiros porque tinha tocado a fodo.

Jovem adulta e estudante da linguagem, aprendi que ela tinha um defeito de fala chamado dislália, muito fácil de corrigir. Mas não no seu tempo de vida.

Saudades da tia-avó Zélia.

Ou será antes da menina que levava recados?

27
Mar21

Da memória

Maria J. Lourinho

O meu quintal tinha pretensões a jardim.

Tinha relva, que não era grama mas escalracho, um canteiro comprido que no inverno dava jarros e no verão sardinheiras, uma sebe feita com escalónia, uma laranjeira e um limoeiro; a grande primenteira do vizinho, que no verão derramava na relva uma sombra generosa e benfazeja, também era, de facto, minha.

Nas noites de canícula e silêncio, depois de os pássaros se acomodarem para dormir, podia ouvir os insectos e ver um monte de estrelas de que nunca soube o nome.

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