Maria J. Lourinho
Do rosto não me lembro bem, só sei que era moreno, mas não esqueci o seu corpo pequeno e roliço que às vezes me dava colo.
Andava depressa, com passinhos miúdos, sempre conversando à nossa frente.
Era minha tia-avó Zélia, de sua graça.
Casada, tinha duas filhas já adultas o que, ao tempo, era pouco. Talvez por isso, quando ouvia alguém lamentar uma mulher pobre por ter muitos filhos, despachava a conversa dizendo:
- Não tenho pena nenhuma dela. Tenho pena de mim e do meu marido que estamos fartos de fazer sacrifícios para ter só duas. Era, convenhamos, prosa arrojada para o seu tempo.
Quando a bisavó morreu, ela, talvez por ser a mais nova, instalou-se com o marido em casa do pai, para tomar conta dele, dos seus pertences e suas necessidades.
A casa do bisavô era perto da minha e, com frequência, a minha mãe mandava-me lá fazer “recados”
Aos meus olhos de criança pequena, aquela casa era mais ou menos uma gruta do Ali Babá, cheia de tesouros e mistérios.
A sala, percebo-o hoje, podia ser uma ilustração dum catálogo do século XIX, cheia de floreiras, canapés, mesa grande, mesas pequenas, guarda-loiça, jarras, molduras de prata lavrada etc., mas o que mais me fascinava era o abajur do candeeiro pendurado sobre a camilha, todo feito de franjas de missangas que baloiçavam e tiniam ao menor sopro, enquanto projectavam sombras dançarinas nas paredes pintadas de um verde desmaiado.
Depois da sala, e a caminho da cozinha, havia a casa das salgadeiras, sombria, sem janelas, gelada de inverno e fresca de verão.
Ao atravessá-la, estugava o passo, ou corria, talvez. O serzinho que eu era não gostava daquele lugar. Mas era necessário passar por ele para desembocarmos na luminosa cozinha, com o seu grande fogão de lenha, a comprida mesa de madeira ao centro, o poial dos alguidares da loiça, os armários embutidos nas paredes e os tachos de arame para as matanças do porco.
Abrindo a porta do fundo, saía-se para o quintal onde, pela primeira vez, vi uma galinha a voar para o telhado do alpendre.
No primeiro andar, entre quartos e saletas, continuávamos no século XIX, mas o que mais me fascinava era a casa de banho, em tons de rosa, e muito avançada para a época.
A tia Zélia, junto com a Carlota, tomava conta daquilo tudo.
A particularidade deveras engraçada desta tia-avó é que ela, ao falar, trocava C por T e G por D.
Lembro, até hoje, certa vez em que a vi amedrontada, quase em fuga, apontar e dizer:
- Está uma talocha ali na tortina.
Ou de uma outra vez, quando lá voltei, depois de ter batido com o nariz na porta à primeira, ela me dizer mal me viu: logo talhou eu ontiadora não estar tá.
Porém, para mim, tudo isso era normal, inclusive ouvi-la dizer (e só muitos anos volvidos ficou anormal) que tinha de ir espreitar o fodão, ou que já se ouvia o carro dos bombeiros porque tinha tocado a fodo.
Jovem adulta e estudante da linguagem, aprendi que ela tinha um defeito de fala chamado dislália, muito fácil de corrigir. Mas não no seu tempo de vida.
Saudades da tia-avó Zélia.
Ou será antes da menina que levava recados?