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Última Paragem

O blog do bicho do mato

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Última Paragem

19
Set22

Outros tempos

Maria J. Lourinho

Hoje perguntei ao meu fisioterapêuta que tal de fim de semana.

- Foi bom. No sábado o miúdo teve duas festas de anos. Ontem, o meu sogro veio e ele, a minha mulher e o miúdo foram ao jogo do Benfica. Eu fiquei com a pequenina e, enquanto ela dormia a sesta, conseguir organizar a semana toda com sopas e tudo.

Digo sempre que nasci cedo demais.

04
Ago22

Nasceu

Maria J. Lourinho

Nasceu pequenino, chorão e comilão, mas nessas primeiras horas também me apresentou ao mais misterioso de todos os amores. Forte, inabalável, corajoso, profundo, guerreiro, doce, eterno, assim é o amor de mãe para filho.

Se eu fosse dada a filosofias esotéricas, reencarnação, new age etc., etc., diria que fui abençoada por ele me ter escolhido para mãe; como não sou, digo que os melhores genes de duas tribos se uniram neste homem que é meu filho e que faz hoje anos.

Porque é inteligente, bonito, trabalhador, humano, sensível, criativo, leal, honesto.

E tenho a certeza que não estou a exagerar com os meus olhos de mãe, pois, de cada vez que ele me apresenta alguém mais velho do que ele, logo sou olhada com genuína simpatia, e não é mesmo nada raro que me digam: muito prazer, e parabéns pelo seu filho.

Ele faz anos hoje, e eu agradeço à vida tê-lo posto no meu caminho e ter feito de mim, também, uma pessoa melhor.

22
Jun21

Na morte da tia (short story)

Maria J. Lourinho

Eram os últimos dias, talvez horas, de vida da tia.

Ana Maria estava sentada junto da cama do hospital e olhava a cabeça branca da velha senhora adormecida; sentia uma enorme serenidade naquela hora de despedida e, por isso mesmo, percebeu que a tinha perdoado.

Aquela tinha sido a tia que a tinha ajudado financeiramente quando foi preciso, mas também a única que a tinha humilhado sempre que lhe foi possível.

Era uma mulher difícil, dada a ódios, ciúmes, excepções entre iguais e neuras.

Apesar dos seus mais de 90 anos, era, desde os vinte, financeiramente independente, amealhou um bom pecúlio e nunca casou. Houve, porém, na vida dela, um eterno amor com um namoro intermitente.

No tempo em que a distância entre o norte e o sul do país era enorme, e no tempo em que as mulheres não saíam de casa dos pais senão para a igreja no dia do casamento, a tia tinha, aos vinte e poucos anos, invertidos os pontos cardeais da sua vida e rumado à terra desse grande amor. Dele, murmurava-se-lhe o nome, mas pouco mais se sabia.

Meses depois, voltou. Sozinha. Nunca mais saiu de casa dos pais, mas o namoro intermitente durou quase toda a vida. Ele aparecia, estavam felizes alguns dias, e voltava a partir. Passavam-se anos sem notícias, até que ele reaparecia. Voltava sempre, partia sempre, e também ele nunca casou.

Que se passaria naquela relação, era a grande interrogação da família. A tia nada dizia mas ficava zangada durante meses.

Já perto dos noventa anos, um dia disse.

-Sabes, Ana Maria, tive de ir ao hospital fazer uma raspagem. É que eu sou virgem e desenvolvi uma infecção “lá atrás”.

Inevitavelmente, Ana Maria pensou que o sexo, ou melhor, a falta dele, deve ter tido um papel importante naquele insucedido namoro, e lembrou-se do maravilhoso romance de Ian McEwam, Na Praia de Chesil, (2007) em cuja badana se lê: “...uma história de vidas transformadas por um gesto não feito ou uma palavra não dita.”

Depois da morte da tia, Ana Maria soube que havia um testamento. Nele, a parte de leão ia para uma outra sobrinha e para Ana Maria ficava uma pequena casa e uma pulseira de ouro de que ela gostava muito quando ainda era menina.

Mal tomou posse do novo património, Ana Maria vendeu a casa pelo primeiro preço que lhe ofereceram. Depois vendeu a pulseira de que já não gostava e comprou um anel de que gostava.

Ao sair da ourivesaria, com a mesma serenidade que sentiu à beira da cama da moribunda, Ana Maria percebeu que, se já tinha enterrado a tia, tinha agora acabado de cremar a humilhação tantas vezes sentida.

Sorriu, sacudiu o cabelo, e pisou firme rumo a casa, sentindo que, de alguma maneira, também ela era uma sobrevivente. Não o somos todos, afinal?

28
Mai21

Uma memória

Maria J. Lourinho

Do rosto não me lembro bem, só sei que era moreno, mas não esqueci o seu corpo pequeno e roliço que às vezes me dava colo.

Andava depressa, com passinhos miúdos, sempre conversando à nossa frente.

Era minha tia-avó Zélia, de sua graça.

Casada, tinha duas filhas já adultas o que, ao tempo, era pouco. Talvez por isso, quando ouvia alguém lamentar uma mulher pobre por ter muitos filhos, despachava a conversa dizendo:

- Não tenho pena nenhuma dela. Tenho pena de mim e do meu marido que estamos fartos de fazer sacrifícios para ter só duas. Era, convenhamos, prosa arrojada para o seu tempo.

Quando a bisavó morreu, ela, talvez por ser a mais nova, instalou-se com o marido em casa do pai, para tomar conta dele, dos seus pertences e suas necessidades.

A casa do bisavô era perto da minha e, com frequência, a minha mãe mandava-me lá fazer “recados”

Aos meus olhos de criança pequena, aquela casa era mais ou menos uma gruta do Ali Babá, cheia de tesouros e mistérios.

A sala, percebo-o hoje, podia ser uma ilustração dum catálogo do século XIX, cheia de floreiras, canapés, mesa grande, mesas pequenas, guarda-loiça, jarras, molduras de prata lavrada etc., mas o que mais me fascinava era o abajur do candeeiro pendurado sobre a camilha, todo feito de franjas de missangas que baloiçavam e tiniam ao menor sopro, enquanto projectavam sombras dançarinas nas paredes pintadas de um verde desmaiado.

Depois da sala, e a caminho da cozinha, havia a casa das salgadeiras, sombria, sem janelas, gelada de inverno e fresca de verão.

Ao atravessá-la, estugava o passo, ou corria, talvez. O serzinho que eu era não gostava daquele lugar. Mas era necessário passar por ele para desembocarmos na luminosa cozinha, com o seu grande fogão de lenha, a comprida mesa de madeira ao centro, o poial dos alguidares da loiça, os armários embutidos nas paredes e os tachos de arame para as matanças do porco.

Abrindo a porta do fundo, saía-se para o quintal onde, pela primeira vez, vi uma galinha a voar para o telhado do alpendre.

No primeiro andar, entre quartos e saletas, continuávamos no século XIX, mas o que mais me fascinava era a casa de banho, em tons de rosa, e muito avançada para a época.

A tia Zélia, junto com a Carlota, tomava conta daquilo tudo.

A particularidade deveras engraçada desta tia-avó é que ela, ao falar, trocava C por T e G por D.

Lembro, até hoje, certa vez em que a vi amedrontada, quase em fuga, apontar e dizer:

- Está uma talocha ali na tortina.

Ou de uma outra vez, quando lá voltei, depois de ter batido com o nariz na porta à primeira, ela me dizer mal me viu: logo talhou eu ontiadora não estar tá.

Porém, para mim, tudo isso era normal, inclusive ouvi-la dizer (e só muitos anos volvidos ficou anormal) que tinha de ir espreitar o fodão, ou que já se ouvia o carro dos bombeiros porque tinha tocado a fodo.

Jovem adulta e estudante da linguagem, aprendi que ela tinha um defeito de fala chamado dislália, muito fácil de corrigir. Mas não no seu tempo de vida.

Saudades da tia-avó Zélia.

Ou será antes da menina que levava recados?

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