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O blog do bicho do mato

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13
Mar21

Sueli (short story)

Maria J. Lourinho

Sueli olhava sem ver a chuva miúda que caía na praceta, enquanto com as mãos, pode dizer-se, quase abraçava uma chávena de chá.

Não era ainda velha, nem ainda nova, mas tinha acumulado anos suficientes para chegar àquela etapa da vida em que é recorrente evocar acontecimentos passados e pessoas que se perderam ou se foram perdendo.

E voltava sempre a Isabel.

Na juventude, quantas horas de estudo e lazer em conjunto, em esplanadas e cafés; quantas viagens de autocarro e de comboio, milhões de palavras, gargalhadas, os poemas queridos da juventude, as confidências de amores falhados e sucedidos.

Havia nela uma disponibilidade amável para os outros. A gargalhada era franca e fácil, mas em Isabel predominava a melancolia.

Sempre a tinha ouvido falar num grande amor, o único, mas Sueli nunca o viu!

Dava a entender uma certa clandestinidade nesse namoro, coisa de família, dizia, mas nunca um pormenor dum encontro, do onde ou do como, nunca um dia de felicidade total, daquela que toda a gente entende de onde vem, nunca a confidência de um beijo trocado no vão da escada ou à torreira do sol.

Tinha outras amigas de que falava mas que nunca mostrou, parecia conhecer muita gente mas aparecia sempre sozinha.

Só tarde na vida Sueli percebeu como tudo isto era, no mínimo, curioso.

Quando a vida profissional ditou as suas regras, nem assim o contacto se quebrou.

Sueli criou família; Isabel manteve-se solteira.

Chegou o dia em que Isabel falhou o encontro marcado na véspera com o (aparente) entusiasmo de sempre.

Inúmeros telefonemas e cartas depois, que sempre esbarraram num inamovível silêncio, colhendo também informações que diziam que Isabel estava bem, instalou-se em Sueli uma tristeza raivosa, no meio da qual percebeu que a amiga certinha, católica, inatamente melancólica e um pouco triste lhe tinha desaparecido para sempre.

 

Uma sucessão de acontecimentos miúdos, espalhados nos anos, que Sueli laboriosamente colou como relíquia de porcelana quebrada, permitiu-lhe a convicção, toda feita de intuição , mas nem por isso menos profunda, de que Isabel desapareceu porque se apaixonou, e essa paixão trazia consigo, nas entranhas, uma funesta traição.

Tinha parado de chover, e a chávena vazia de chá já lhe estava a arrefecer as mãos.

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