O conflito que dura uma vida, ou mais
Como começou o atual conflito israelo-palestiniano? Foi quando palestinianos de Jerusalém oriental protestaram contra o despejo de famílias árabes do bairro de Sheikh Jarrah, onde há disputas imobiliárias entre judeus e muçulmanos? Terá sido quando colonos israelistas e moradores do bairro predominantemente palestiniano, mutuamente acirrados por essa disputa, se agrediram? Ou quando o governo israelita enviou milhares de polícias para a Mesquita de Al Aqsa no último dia do Ramadão? Ou quando os islamistas do Hamas, que governam em Gaza, lançaram mísseis sobre Jerusalém em retaliação contra essa ocupação? Ou quando o exército israelita respondeu com ataques de artilharia pesada e a destruição de edifícios, incluindo sedes de organizações de media? Ou quando, e se, e por aí além, até ao infinito?
Na verdade, há muito que já passou a ser mais esclarecedor considerar o conflito israelo-palestiniano como uma crise latente permanente que pode passar do lume brando ao lume alto dependendo da conjuntura política. Deslocando a grelha de leituras das causas próximas para a conjuntura política, as coisas passam a ser mais legíveis, porque passamos a ter uma ideia mais clara de a quem interessa cada agudizar da crise. Ora, o que estava a acontecer quando a atual ronda de conflitos começou é que Benjamin Netanyahu, acossado por inúmeras acusações e processos de corrupção, e agarrado ao poder nestes últimos tempos por uma série de estratagemas cada vez mais rebuscados, estava a pontos de ter de ceder o cargo de primeiro-ministro. E o que aconteceu a seguir é que o recrudescimento do conflito tornou clara a impossiblidade de formar uma coligação alternativa para tirar Netanyahu do poder, tal era a heterogeneidade de pontos de vista entre a oposição assim que o centro do debate deixou de ser a corrupção de Netanyahu para ser a questão de como reagir perante o conflito.
Do outro lado da barricada, o Hamas é inimigo de Netanyahu mas, na prática, o seu aliado objetivo. Pois a ambos interessa ter agora o conflito em lume alto de forma a tornar impossível o aparecimento daquilo que mais temem: a emergência de uma maioria israelo-palestiniana cansada da violência e disposta a dar base social de apoio a uma solução de paz. O conflito sem-início-nem-fim é o que mais serve àqueles que fundam o seu poder numa obsessão absolutista de uma terra do mar-ao-rio desprovida de judeus, ou de árabes, conforme o lado.
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Rui Tavarea, o cronista que nunca me desilude, Público, 17/5/2021