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Última Paragem

O blog do bicho do mato

O blog do bicho do mato

Última Paragem

28
Mai21

Uma memória

Maria J. Lourinho

Do rosto não me lembro bem, só sei que era moreno, mas não esqueci o seu corpo pequeno e roliço que às vezes me dava colo.

Andava depressa, com passinhos miúdos, sempre conversando à nossa frente.

Era minha tia-avó Zélia, de sua graça.

Casada, tinha duas filhas já adultas o que, ao tempo, era pouco. Talvez por isso, quando ouvia alguém lamentar uma mulher pobre por ter muitos filhos, despachava a conversa dizendo:

- Não tenho pena nenhuma dela. Tenho pena de mim e do meu marido que estamos fartos de fazer sacrifícios para ter só duas. Era, convenhamos, prosa arrojada para o seu tempo.

Quando a bisavó morreu, ela, talvez por ser a mais nova, instalou-se com o marido em casa do pai, para tomar conta dele, dos seus pertences e suas necessidades.

A casa do bisavô era perto da minha e, com frequência, a minha mãe mandava-me lá fazer “recados”

Aos meus olhos de criança pequena, aquela casa era mais ou menos uma gruta do Ali Babá, cheia de tesouros e mistérios.

A sala, percebo-o hoje, podia ser uma ilustração dum catálogo do século XIX, cheia de floreiras, canapés, mesa grande, mesas pequenas, guarda-loiça, jarras, molduras de prata lavrada etc., mas o que mais me fascinava era o abajur do candeeiro pendurado sobre a camilha, todo feito de franjas de missangas que baloiçavam e tiniam ao menor sopro, enquanto projectavam sombras dançarinas nas paredes pintadas de um verde desmaiado.

Depois da sala, e a caminho da cozinha, havia a casa das salgadeiras, sombria, sem janelas, gelada de inverno e fresca de verão.

Ao atravessá-la, estugava o passo, ou corria, talvez. O serzinho que eu era não gostava daquele lugar. Mas era necessário passar por ele para desembocarmos na luminosa cozinha, com o seu grande fogão de lenha, a comprida mesa de madeira ao centro, o poial dos alguidares da loiça, os armários embutidos nas paredes e os tachos de arame para as matanças do porco.

Abrindo a porta do fundo, saía-se para o quintal onde, pela primeira vez, vi uma galinha a voar para o telhado do alpendre.

No primeiro andar, entre quartos e saletas, continuávamos no século XIX, mas o que mais me fascinava era a casa de banho, em tons de rosa, e muito avançada para a época.

A tia Zélia, junto com a Carlota, tomava conta daquilo tudo.

A particularidade deveras engraçada desta tia-avó é que ela, ao falar, trocava C por T e G por D.

Lembro, até hoje, certa vez em que a vi amedrontada, quase em fuga, apontar e dizer:

- Está uma talocha ali na tortina.

Ou de uma outra vez, quando lá voltei, depois de ter batido com o nariz na porta à primeira, ela me dizer mal me viu: logo talhou eu ontiadora não estar tá.

Porém, para mim, tudo isso era normal, inclusive ouvi-la dizer (e só muitos anos volvidos ficou anormal) que tinha de ir espreitar o fodão, ou que já se ouvia o carro dos bombeiros porque tinha tocado a fodo.

Jovem adulta e estudante da linguagem, aprendi que ela tinha um defeito de fala chamado dislália, muito fácil de corrigir. Mas não no seu tempo de vida.

Saudades da tia-avó Zélia.

Ou será antes da menina que levava recados?

27
Mai21

Vergonha alheia

Maria J. Lourinho

O programa "Lisboa Protege" tem sido desperdiçado por empresas e comerciantes do concelho, onde a situação epidemiológica tem vindo a agravar-se. Este programa foi criado pela autarquia de Fernando Medina há 30 dias e paga dois testes anticovid por mês a cada funcionário das empresas (mesmo que tenham residência fora do concelho de Lisboa) que viram a sua facturação cair mais de 25% por causa da pandemia. Ao fim deste tempo, apenas 29 vouchers foram emitidos, apurou o PÚBLICO, e apenas um destes foi utilizado. Trata-se de um universo de 5100 empresas que abrange perto de 6 mil trabalhadores. Mais de metade destas empresas são restaurantes, as restantes são comércio.

Público, 26/5/2021

Quase 27% dos dois milhões de SMS enviados ficaram sem resposta. Na semana passada, um terço das pessoas previstas não apareceu nos oito centros de vacinação de Lisboa.

Público 27/5/2021

Assim não vamos lá, obviamente.

26
Mai21

David Grossman, israelita e escritor

Maria J. Lourinho

David Grossman 1.jpg

David Grossman, International Booker Prize em 2017 e frequente candidato ao Nobel

Resposta numa entrevista dada a um jornal chileno, que o Expresso de 22 de Maio 2021 reproduz:

"O que tento recordar a mim mesmo, e às pessoas aqui em Israel, é que tudo isto existe para termos uma vida de paz. Nunca tive um dia de paz na minha vida, não sei o que é a paz. Imagino que seja respirar com ambos os pulmões, ou como viver a vida sem medo do futuro, sabendo que vais ter uma sequência de filhos e de netos que irão viver com segurança e confiança. Sentimo-nos orgulhosos ao dizer que somos um país democrático e que somos a única democracia no Médio Oriente. Mas, honestamente, se ocupamos território e praticamos a opressão durante 53 anos, como o fazemos com os palestinianos, podemos realmente ser considerados uma democracia?", questiona.

25
Mai21

A velha é maluca

Maria J. Lourinho

No meu prédio há obras há um ano. Primeiro num andar, depois noutro, durante alguns meses os dois em simultâneo.

Portanto, há um ano que vivemos com martelo pneumático, rebarbadora, berbequim e seus parentes.

No passado sábado, pelas 10 da manhã, comecei a ouvir a broca. Com três saltos pus-me junto do operário (um jovem sul-americano) que, com os seus auscultadores, ouvia música e “brocava”.

Dada a irritação,não sei ao certo que disse, mas sei que disse; ou melhor, não disse, ordenei, que se fosse embora porque eu não queria ouvir nem mais um pio.

Tentou argumentar, coitado, mas lembro-me de ter terminado dizendo-lhe que ligasse ao patrão a dizer que eu não autorizava o trabalho.

Estou farta de imaginar a conversa com o patrão e de com isso me rir:

- Patrão, não posso trabalhar, a dona lá de cima não quer.

- E argumenta o patrão – não ligues e acaba o que tens a fazer.

- E diz o operário – não patrão, vou mas é já embora que a velha é maluca.

Claro que eu sabia que a lei estava do meu lado.

24
Mai21

Coboiada

Maria J. Lourinho

A coboiada encenada e levada a cabo pelo presidente bielorrusso, Lukashenko, no espaço aéreo europeu, com um avião europeu, para prender um jornalista, vai servir-me para avaliar o grau de coragem da União Europeia.

Suponho que já está no grau zero, mas esta é a oprtunidade de ouro para confirmar.

Por mim, estou estarrecida, apesar de já saber que tudo é possível nos dias que correm.

Correcção: o avião voava entre duas capitais europeias mas, no momento, voava sobre a Bielorrúsia.

22
Mai21

As leituras são como as cerejas

Maria J. Lourinho

“O mensageiro de Os Persas relata com dolorosa emoção a Batalha de Salamina, que chegou a ser um símbolo contemporâneo. Os Soldados de Salamina aos quais Javier Cercas se refere no seu romance são aqueles gregos que detiveram a invasão do Império Persa, e também os soldados da resistência contra o nazismo. Cercas sabe que pode haver soldados de Salamina em todas as épocas: os que encaram uma batalha decisiva — e aparentemente perdida — para defenderem o seu país, a democracia e as suas aspirações. Salamina deixou de ser só uma pequena ilha do mar Egeu, a dois quilómetros do porto do Pireu e, para além dos mapas, existe em qualquer lugar onde alguém, em inferioridade numérica, se rebela contra uma agressão avassaladora.”

In O Infinito num Junco, Irene Vallejo

O livro de Javier Cercas a que Irene Vallejo se refere ‒ Soldados de Salamina, foi um dos melhores que li nos últimos anos.

Sobre ele anotei apenas:

Magnífico. Escrita depurada mas forte, podendo ser crua ou quase poética. Uma história de homens, ou da guerra, ou dos homens na guerra, ou da guerra nos homens.

E é ainda de Cercas, em Soldados de Salamina, a frase que agora recordei na entrevista que dá à revista  Ler:

"A literatura é a arte de combinar recordações".

As leituras são como as cerejas, sim.

 

20
Mai21

Spotify

Maria J. Lourinho

Acho que tenho uma paixoneta pelo Spotify.

Ele é tão delicado, trata-me pelo nome, está sempre à procura da melhor maneira de me satisfazer.

Abro a aplicação no PC ou no telemóvel, em casa, na rua , em viagem e ele lá está para me dizer do que gostei nos últimos tempos, o que ouvi (música - pop, clássica ou jazz - ou podcasts).

Com base nisso, oferece-me o daily mix 1, 2, 3, 4, 5, deixa-me fazer play lists e também me propõem coisas diferentes que devo assinalar com um coraçãozinho, ou não, para ele se orientar, coitado.

É um querido. Não me deixa andar muito aos saltos entre músicas porque sou do grupo das borlas, mas também já não tenho idade para andar aos saltos.

Somos felizes na nossa relação, e isso é que importa.

Somos tão felizes que, às vezes, lembro-me dum artigo da Clara Ferreira Alves, há muitos anos, nos primórdios da Amazon. Como ela pensa sempre que está a escrever para ignorantes, escreveu uma crónica cantando todas as virtudes de usar a Amazon (como eu agora com o Spotify) para comprar os seus livros, todos, todos em inglês. Afinal a Amazon veio a transformar-se numa fera capitalista que vende de tudo, procura não pagar impostos nenhuns usando paraísos fiscais como a Irlanda ou a Holanda, e esfola os seus funcionários com condições de trabalho desumanas.

Eu não lhe compro nadinha.

Oxalá eu não venha a ter um desgosto de amor com o Spotify como, suponho, a Clara teve com a Amazon.

Pela natureza das coisas, estas são, geralmente, relações de curta duração mas, repescando o velho Vinícius (que entra sempre bem), desejo muito que este amor “seja eterno enquanto dure”.

18
Mai21

O conflito que dura uma vida, ou mais

Maria J. Lourinho

Como começou o atual conflito israelo-palestiniano? Foi quando palestinianos de Jerusalém oriental protestaram contra o despejo de famílias árabes do bairro de Sheikh Jarrah, onde há disputas imobiliárias entre judeus e muçulmanos? Terá sido quando colonos israelistas e moradores do bairro predominantemente palestiniano, mutuamente acirrados por essa disputa, se agrediram? Ou quando o governo israelita enviou milhares de polícias para a Mesquita de Al Aqsa no último dia do Ramadão? Ou quando os islamistas do Hamas, que governam em Gaza, lançaram mísseis sobre Jerusalém em retaliação contra essa ocupação? Ou quando o exército israelita respondeu com ataques de artilharia pesada e a destruição de edifícios, incluindo sedes de organizações de media? Ou quando, e se, e por aí além, até ao infinito?

Na verdade, há muito que já passou a ser mais esclarecedor considerar o conflito israelo-palestiniano como uma crise latente permanente que pode passar do lume brando ao lume alto dependendo da conjuntura política. Deslocando a grelha de leituras das causas próximas para a conjuntura política, as coisas passam a ser mais legíveis, porque passamos a ter uma ideia mais clara de a quem interessa cada agudizar da crise. Ora, o que estava a acontecer quando a atual ronda de conflitos começou é que Benjamin Netanyahu, acossado por inúmeras acusações e processos de corrupção, e agarrado ao poder nestes últimos tempos por uma série de estratagemas cada vez mais rebuscados, estava a pontos de ter de ceder o cargo de primeiro-ministro. E o que aconteceu a seguir é que o recrudescimento do conflito tornou clara a impossiblidade de formar uma coligação alternativa para tirar Netanyahu do poder, tal era a heterogeneidade de pontos de vista entre a oposição assim que o centro do debate deixou de ser a corrupção de Netanyahu para ser a questão de como reagir perante o conflito.

Do outro lado da barricada, o Hamas é inimigo de Netanyahu mas, na prática, o seu aliado objetivo. Pois a ambos interessa ter agora o conflito em lume alto de forma a tornar impossível o aparecimento daquilo que mais temem: a emergência de uma maioria israelo-palestiniana cansada da violência e disposta a dar base social de apoio a uma solução de paz. O conflito sem-início-nem-fim é o que mais serve àqueles que fundam o seu poder numa obsessão absolutista de uma terra do mar-ao-rio desprovida de judeus, ou de árabes, conforme o lado.

...

Rui Tavarea, o cronista que nunca me desilude, Público, 17/5/2021

15
Mai21

Feminismo no século XXI explicado às criancinhas

Maria J. Lourinho

Era uma vez uma vara.

Enterrada no chão, devia ficar direita mas alguém a dobrou toda para um lado e assim ficou durante muitos anos, quase uma eternidade.

Um dia, com grande esforço e raiva, outro alguém tentou endireitá-la; precisou de a dobrar toda para o lado oposto.

Para que ela no futuro fique direita, serão ainda precisos muitos anos e muito trabalho.

Mas...lá virá o dia.

14
Mai21

Perdidos sem achados

Maria J. Lourinho

Tenho-me estado a lembrar da escritora Dulce Maria Cardoso que tem uma singular técnica de escrita. Ela escreve todo o livro no computador. Estando pronto, apaga tudo. Depois volta a escrever. Quando a ouvi contar isto, fiquei absolutamente estupefacta.

E por que lembrei dela? Porque estive a escrever uma croniqueta para o blog sobre uma tia-avó. Aquilo até não me pareceu mal mas, ao copiar do openoffice para o blog, pura e simplesmente desapareceu. Só ficou a última frase.

Há mais de uma hora que procuro o texto usando todas as ajudas que conheço, e nada.

Como não sou a Dulce Maria Cardoso, fiquei triste, e despeço-me até que me passe esta irreprimível vontade de "prender o burro".

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