Memória dos corpos tangíveis
O elevador do hotel da praia era uma espécie de Arca de Noé dos tempos modernos.
“Sobe que sobe, desce que desce”, sempre carregando gente no bojo, mas também tralhas, aromas e estados de alma
Pela manhã, o elevador transportava restos de sono e sonhos, vestidos de calção, t-shirt e sandálias. Geralmente não tinha cheiro, mas podia pairar no ar um leve aroma a sabonete de hotel.
Ao longo de todas as horas do dia, amontoava homens, mulheres, velhos, novos, crianças de todos os tamanhos, mas também sacos de praia a abarrotar de “coisas”, toalhas, sombrinhas, cadeiras, colchões, carrinhos de bebé, cadeiras de rodas, baldes, pás, chapéus.
Enfeitava-se de fato de banho ou biquíni, saída de praia, óculos de sol e chinela no pé.
Cheirava a sal e sol, a protector solar e a suor.
Levava sempre muitos, apertadinhos uns contra os outros; quase se podia apalpar a claustrofobia, o mal-estar ansioso, o desagrado pela excessiva proximidade de corpos estranhos, a sufocante ausência de espaço vital, o cansaço e o silêncio.
Ao pôr-do-sol, o elevador descia já lavado de água doce; jovens de cabelo ainda molhado, senhoras bem penteadas (como o conseguiriam?).
No ar misturavam-se aromas de todas as águas-de-colónia da moda, e vestia-se com vontade de parecer bem.
De noite, voltava a subir, e a cheirar de novo a sono e sonhos, mas também a sexo, álcool, erva, azia e escaldão.
Por umas horas, descansava, para ao alvorecer recomeçar o seu interminável “sobe que sobe, desce que desce”, cheio de corpos estranhos mas, ainda assim, tangíveis. Outros tempos.