Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Última Paragem

O blog do bicho do mato

O blog do bicho do mato

Última Paragem

27
Fev21

Lisboa a rir

Maria J. Lourinho

Onte à tarde, vinda de uma consulta médica, passei a pé pela Praça de Londres, Arco do Cego, Av. da República, Miguel Bombarda e um pouco mais além.

A vida corria normal, com autocarros, carros, motas, bicicletas, pessoas a pé, sozinhas ou aos pares, falando ao telemóvel ou ouvindo música, crianças brincavam na praça com os pais a vigiar sentados nos proibidos bancos. Comprei uns bolinhos à porta da pastelaria; só não pude tomar um café porque, ao que consta, e no que toca ao café, onde há um português juntam-se logo dois ou três. 

Tudo visto e observado, ontem, pelas seis da tarde, senti que Lisboa se ria  do confinamento sem prazo da dupla Costa/Marcelo.

22
Fev21

Onomástica prodigiosa.

Maria J. Lourinho

Numa travessa em que viviam mulheres com nomes tão extraordinários como Amarilde, Feverónia ou Gualdina, Rosinda, a lavadeira, chamou à sua filha, Gláucia.

Esta, veio a casar com o vizinho Pécurto, que se tornou fotógrafo reconhecido e me tirou este retrato, à janela de casa dos meus bisavós, quando eu tinha três anos.

E talvez esta seja a minha primeira memória - o momento captado na travessa de onomástica prodigiosa.

À janela.jpg

 

 

20
Fev21

Pim-Pam-Pum

Maria J. Lourinho

A mais comum viagem das máscaras em Portugal ao fim de um ano:

Debaixo do nariz - Pim 

Debaixo do queixo - Pam

Debaixo do pé - Pum

Nota: Pim-Pam-Pum- era o nome do suplemento infantil de um qualquer jornal na minha infância. Passou a integrar algumas lenga-lengas infantis e deu nome a música, filmes etc.

18
Fev21

Dona Antónia (Short story)

Maria J. Lourinho

A minha mãe referia-se-lhe apenas por Antónia. Falando comigo, chamava-lhe Dona Antónia.

Esta era a forma que ela tinha de me mostrar o seu desprezo por certas formas de vida, mas também a necessidade de respeitar todos.

Dona Antónia vivia na nossa rua, no tempo em que o casco velho da cidade era a totalidade do mundo para os seus habitantes.

Era na rua que os rapazes brincavam aos polícias e ladrões, aos cowboys, ou jogavam hóquei em patins sem patins, apenas com sticks manhosos e uma bola pequenina.

As meninas não participavam nesses brincadeiras. Ficavam à janela olhando os jogos dos rapazes, cumprimentando quem passava (sempre os mesmos) e apreciando o incansável trabalho das formigas por baixo da janela de peito do rés-do-chão.

Dona Antónia, que ali vivia sozinha, era recatada mas, por vezes, ao final da tarde, com a lida da casa feita e arrumada, também assomava à janela e por ali se deixava ficar um bom bocado, numa lassidão sensual e bem tratada.

O cabelo, a começar a ficar grisalho, apresentava-se sempre impecavelmente apanhado numa “banana”, os lábios levavam um ligeiro toque carmesim. Nas poucas vezes que saía, Dona Antónia usava, invariavelmente, saia travada, blusa ou casaquinho, e sapatos de meio salto. Na mão, apenas as chaves e o porta moedas, como quem pensa – não me demoro. E não se demorava.

Presumo, hoje, tantos anos passados, que nunca saberia a que horas chegava, ou sequer se chegava, o lavrador alto, de chapéu e bota rasa, que metia a chave à porta com indisfarçável ar de dono da casa e de todo o seu recheio, pois que tudo ali era pago e mantido por ele.

As bruxas do burgo velho, iguais às que existem em toda a parte e gostam de sair de noite, diziam que o cavalheiro bem apessoado que alugava um quarto na casa ao lado fazia umas surtidas nocturnas que terminavam a deslizar para dentro da porta da dona Antónia.

É certo que em todas as vidas há bocados duros de roer e outros de puro prazer, mas gozar assim com o poderoso macho latifundiário? Não, não acredito. Nem nunca acreditei em bruxas.

16
Fev21

Diga lá outra vez V

Maria J. Lourinho

JulianBarnes.jpg

"Haveria representação mais assombrosa do destroçar das ilusões humanas do que O Rei Lear? Não, não era inteiramente assim: não era destroçar, porque isso implicava uma única e grande crise. Em vez disso, o que acontecia às ilusões humanas era que se desfaziam, secavam. Era um processo longo e trabalhoso, como uma dor de dentes que avança e alcança a alma. Mas podemos arrancar o dente e ela passa. As ilusões, porém, mesmo depois de mortas, continuam a apodrecer e a tresandar dentro de nós. Não podemos fugir ao gosto e ao cheiro delas. Trazemo-las connosco o tempo todo."

Julian Barnes 

"O Ruído do tempo"

15
Fev21

O Poder e a Glória, Graham Green

Maria J. Lourinho

Considerado um dos melhores romances do século XX, comprei-o porque era uma edição de bolso, ao preço de 7,50€, embora sabendo dessa classificação.

Sem negar as qualidades de escritor de Graham Green, do qual já tinha lido vários outros romances, entre os quais destaco "O Fim da Aventura", nunca fui uma fã entusiástica dos seus livros, e continuo a não o ser depois deste.

Passado no México durante a perseguição religiosa levada a cabo pelos políticos da época, entre 1926 e 1934, conta-nos a fuga de um padre, talvez o único que resta no estado de Tabasco (fugiram, foram fuzilados, ou renegaram a vocação).

É um homem acossado igual a todos o que o são. É um ser torturado e um pecador.

Em contraponto, há uma segunda figura central: o tenente que o persegue tenazmente, ateu convicto, virtuoso e austero, apostado em libertar os homens do “ópio” da religião.

Há no livro cenas muito fortes, quase cinematográficas, e situações em que todos, crentes e ateus, somos interpelados.

Será um livro que não esqueço, sei disso, mas nunca será um dos meus livros.

Também o sei.

13
Fev21

Viagem ao Sonho Americano

Maria J. Lourinho

Para quem, como eu, gosta de literatura americana, comprar o livro de Isabel Lucas, “Viagem ao Sonho Americano”, é quase uma inevitabilidade.

A autora, que escreve regularmente para o Público, viajou durante um ano por vários Estados americanos, tomando como ponto de partida para cada um deles um livro de referência, sondando simultaneamente “a condição americana, os seus mitos, paradoxos, medos e fragilidades, mas também a sua grandeza e capacidade de reinvenção”, lê-se na contracapa.

Acredito que aqui deixarei outros apontamentos sobre este livro, pois que ainda agora o comecei e já venho guardar um parágrafo da introdução que, a meus olhos, sintetiza uma verdade em que hoje, século XXI, pouco ou nada pensamos:

“Os que estão aqui, nas próximas páginas, são uma escolha e exemplificativa, penso, da tal complexidade do país que, como me dizia outro escritor, nasceu e se moldou em dois grandes males: o massacre dos índios e a escravatura. Nos dois casos esteve presente a violência de que a América nunca se conseguiu livrar, como se fizesse parte do seu ADN”. 

11
Fev21

A meu lado

Maria J. Lourinho

Faço a minha caminhada

a volta é larga e traz-me

a casa; então, sem som

ou palavra, sou eu que estou a meu lado.

 

Robert Walser, in “Descida Brusca de Temperatura - Alguma poesia suíça”

(via Carlos Vaz Marques)

10
Fev21

Duplos sentidos

Maria J. Lourinho

thumb_i-have-i-have-new-cookie-sport-car-big-house

Este desenho é bem conhecido mas, de cada vez que o via, sempre tinha a sensação que ele não teria só o sentido literal da bondade e partilha.

Até que fui ver. E desfiz a dúvida no Urban Dicionary.

Traduzo:

Have a cooky

"Frase absurda usada para distrair, desviar ou adicionar leviandade irracional a uma conversa. Normalmente usado por pessoas ignorantes que não têm nenhum conhecimento útil ou entrada relevante para uma discussão.

Por ex:

"- Eu acredito que a equação de Schrõdinger falha em calcular as probabilidades de certos resultados em qualquer estado do sistema quântico, o que acha?"

"- Have a cooky!"

E, agora, o que nasceu primeiro? Por mim, acho que foi o que o dicionário descreve e só depois alguém desenhou este meme com outro sentido.

Certo ou errado, abençoada internet que tanto pode ajudar os ignorantes.

09
Fev21

Suspenderam-nos a democracia? Não dei por nada.

Maria J. Lourinho

O medo não nos impede de morrer, mas impede-nos de viver.

Não sei quem disse, mas sei que li algures esta enorme verdade em que tenho pensado tantas vezes perante algumas pessoas próximas.

Entre os portugueses, de há um ano para cá, nasceram dois grupos antagónicos – os que têm tanto medo do vírus que, pode considerar-se, deixaram de viver, e, por outro lado, uma certa elite intelectual que decidiu que todo o confinamento é uma estupidez e que, com ele, o Estado está a suspender a democracia.

Para os primeiros, não há remédio; quanto aos segundos, são uma lástima.

Por serem pessoas com responsabilidade social, e até académica, esperava-se um pouco mais, embora saibamos que sentimentos de pertença e responsabilidade colectiva são formas de estar que lhes são, geralmente, estranhas.

Na lúdica glorificação do seu umbigo, continuam a ter palco,  aplauso, e público maioritariamente acéfalo e seguidista q.b. para lhes manter o ego bem polido.

E isso lhes basta. O país, neste ano de medo e morte, passava bem sem eles mas, isso sim, seria uma real suspensão da democracia.

 

06
Fev21

Há dias

Maria J. Lourinho

Uma mulher acorda cedo, abre a janela e vê um dia cinzento, algum vento, chuvisco, o chão da rua bem olhado, as árvores nuas.

Mapeia o resto do dia e resolve voltar para a cama. Apetece-lhe tapar a cabeça, mas não o faz, talvez porque os arrepios no cabelo já sejam demasiados.

Passado o primeiro embate com este sábado, a mulher resolve levantar-se, calçar uns ténis, vestir um casaco impermeável e sair.

Caminha energicamente à volta de três quarteirões vendo o jardim fechado, as poças de água na calçada, as folhas caídas, as lojas encerradas, as pessoas cinzentas e alquebradas, a fila à porta da farmácia.

De regresso a casa, prega três gritos bem puxados para dentro duma toalha felpuda e, de seguida, deixa correr sobre o corpo a água quente do chuveiro.

Não ficou boa, mas afastou o espantalho depressivo da caldeirada inverno+covid+confinamento.

A receita resulta, é barata e dada de boa vontade, se aproveitar a alguém.

Pág. 1/2

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub