Leituras IV
"Ignoramos o que o tempo fará de nós com as suas finas camadas que se sobrepõem indistinguíveis, ignoramos em que é que nos pode transformar. O tempo avança sigilosamente, dia a dia e hora a hora e passo a passo envenenado, não se faz notar no seu sub-reptício labor, tão respeitoso e cauto que nunca nos dá um empurrão nem um sobressalto. Aparece todas as manhãs com o seu semblante apaziguador e invariável, e garante-nos o contrário do que está a acontecer: que está tudo bem e nada muda, que tudo está como ontem - o equilíbrio das forças -, que nada se ganha e nada se perde, que a nossa cara é a mesma e também o nosso cabelo e a nossa figura, que quem nos odiava continua a odiar-nos e quem gostava de nós continua a gostar. E a verdade é que é precisamente o contrário, simplesmente ele não nos permite dar por isso com os seus traiçoeiros minutos e os seus astutos segundos, até que chega um dia estranho, impensável, em que nada é como sempre foi".
Javier Mariás, "Os Enamoramentos"