Belo
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Uma surpresa muito agradável dado que não sou devota da literatura espanhola
A louca da casa é romance, ensaio, ficção, autobiografia, enfim, um pouco de muitos géneros.
Nele, Rosa fala-nos de escritores, de livros, do processo criativo, do real e do imaginado, do que existe e do que presumimos, do envelhecimento e do papel da imaginação (a louca da casa) em tudo isso.
Uma escrita muito agradável e fluída que, porém, nunca é levezinha.
"Fiquei ali um momento a admirar a minha obra, pois dá muito prazer ver a roupa lavada e batida pelo vento, como flâmulas numa corrida ou as velas de um navio. E o som que produz assemelha-se ao das mãos dos anjos celestes a aplaudir, embora ouvidas de muito longe.
E dizem que a limpeza está próxima da santidade e, às vezes, quando via os aglomerados de nuvens muito brancas no céu depois de chover, pensava que era como se fossem os próprios anjos a pendurar a sua roupa lavada, pois alguém tinha de o fazer, já que tudo no paraíso tem de estar limpo e imaculado. Mas isso eram fantasias de criança, pois as crianças gostam de contar a si mesmas histórias acerca de coisas que não são visíveis. E na altura eu pouco mais era do que uma criança, embora me considerasse uma adulta por já ganhar a vida."
Margaret Atwood, In "Alias Grace"
Georgia O'Keeffe, 1887 - 1986
Dia de Natal 2020
A foto é minha mas pode levar
A foto é minha mas pode levar
“O QI médio da população mundial, que sempre aumentou desde o pós-guerra até o final dos anos 90, diminuiu nos últimos vinte anos ...
É a inversão do efeito Flynn.
Parece que o nível de inteligência medido pelos testes diminui nos países mais desenvolvidos.
Pode haver muitas causas para esse fenómeno.
Um deles pode ser o empobrecimento da linguagem.
Na verdade, vários estudos mostram a diminuição do conhecimento lexical e o empobrecimento da linguagem: não é apenas a redução do vocabulário utilizado, mas também as subtilezas linguísticas que permitem elaborar e formular pensamentos complexos.
O desaparecimento gradual dos tempos (conjuntico, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento: incapaz de projecções no tempo.
A simplificação dos tutoriais, o desaparecimento das letras maiúsculas e da pontuação são exemplos de "golpes mortais" na precisão e variedade de expressão.
Apenas um exemplo: eliminar a palavra "signorina" (agora obsoleta) não significa apenas abrir mão da estética de uma palavra, mas também promover involuntariamente a ideia de que entre uma menina e uma mulher não existem fases intermédias.
Menos palavras e menos verbos conjugados significam menos capacidade de expressar emoções e menos capacidade de processar um pensamento.
Estudos têm mostrado que parte da violência nas esferas pública e privada decorre directamente da incapacidade de descrever as emoções em palavras.
Sem palavras para construir um argumento, o pensamento complexo torna-se impossível.
Quanto mais pobre a linguagem, mais o pensamento desaparece.
A história está cheia de exemplos e muitos livros (Georges Orwell - "1984"; Ray Bradbury - "Fahrenheit 451") contam como todos os regimes totalitários sempre atrapalharam o pensamento, reduzindo o número e o significado das palavras.
Se não houver pensamentos, não há pensamentos críticos. E não há pensamento sem palavras.
Como construir um pensamento hipotético-dedutivo sem o condicional?
Como pensar o futuro sem uma conjugação com o futuro?
Como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de elementos no tempo, passado ou futuro, e sua duração relativa, sem uma linguagem que distinga entre o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que poderia ser, e o que será depois do que pode ter acontecido, o que realmente aconteceu?
Caros pais e professores: Façamos com que nossos filhos, nossos alunos falem, leiam e escrevam. Ensinar e praticar o idioma nas suas mais diversas formas. Mesmo que pareça complicado. Principalmente se for complicado.
Porque nesse esforço existe liberdade.
Aqueles que afirmam a necessidade de simplificar a grafia, descartar a linguagem de seus "defeitos", abolir géneros, tempos, nuances, tudo que cria complexidade, são os verdadeiros arquitetos do empobrecimento da mente humana.
Não há liberdade sem necessidade.
Não há beleza sem o pensamento da beleza. "
- Christophe Clavé
Anna Burns escreve um livro surpreendente. É um romance, sim, mas também um documento sobre Belfast dos anos 1970 do século passado.
Escrito num estilo tão coloquial como pessoal e íntimo, leva-nos a um tempo e um lugar de confronto físico e psicológico. Há bombas, envenenamentos, julgamentos clandestinos, paramilitares, militares, governo e anti-governo, medos, rumores, convenções e um extraordinário e obsceno domínio dos homens sobre a vida das mulheres. E coragem.
Nenhum personagem tem nome, mas todos são fáceis de identifica
São 380 páginas densas mas que nos agarram facilmente e nunca desiludem.
Uma leitura gratificante com, imagine-se, um final feliz.
O senhor comissário da polícia era alto, forte, e dono dum exuberante bigode preto.
Homem de meia-idade, usava a farda azul marinho com aprumo, apesar de os nossos olhos serem atraídos, e se deterem, antes de mais, no lustroso cassetete em cujo manejo, dizia-se, era exímio. Era o tempo da ditadura, e o homem, no seu conjunto, tinha forma de respeitinho; ou de medo.
O senhor comissário era casado com Celina. Esta, por sua vez, era maravilhosamente pequena, não iria além do metro e meio. Loira, de pele lisa e rosada, cifose dorsal acentuada, tão simples e modesta quanto simpática.
Curiosamente, a sua única e evidente vaidade concentrava-se nas mãos, cujo arranjo nunca descurava, apesar de ser ela que fazia todo o trabalho doméstico.
Não havia filhos, mas Celina tinha um cão, pequeno como ela, que abusava dos agudos ao ladrar.
Quando era verão e as janelas estavam abertas, na hora do senhor Sousa chegar a casa para almoçar, ouviam-se, por aquelas travessas do burgo velho, os desenfreados, repetidos, repenicados e altissonantes beijos do comissário na bochecha rosada da Celina.
Lá em casa éramos todos cúmplices daquele expansivo afecto que nos entrava fresco e brejeiro pelas janelas.
Quem diria? Entreolhavamo-nos e sorríamos, silenciosos, quase embevecidos.
Quando este alvoroço acalmava e a vida retomava a pacatez provinciana, o que voltava a sair pelas janelas abertas da vizinhança eram os aromas das comidas alentejanas, mais os seus indisfarçáveis temperos igualmente doces e quentes
Era hora de também nós irmos almoçar.
E estava tudo bem.
A foto é minha mas pode levar
Christopher Hitchens 1949-2011
«Everybody does have a book in them, but in most cases that's where it should stay.»
A foto é minha mas pode levar
Envelhecer tem uma única, mas enorme, vantagem: ficamos indiferentes à opinião que os outros têm de nós.
Annie Ernaux
Quem já viveu, na idade adulta, uma paixão amorosa lícita ou ilícita, encontrará neste livrinho de setenta páginas, tudo o que enforma esse sentimento humano, de entre todos o mais poderoso e obsessivo.
"fonte da maior felicidade e da mais dolorosa solidão, viver algo assim será talvez o maior privilégio da existência", escreve-se na contracapa.
Lançado em 1991, foi reeditado pela Porto Editora em 2020, nas Edições Livros do Brasil, formato de bolso, por 8,80€.
Annie Ernaux nasceu em França em 1940.
Galardoada com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017), e o Prémio Formentor das Letras (2019) pelo conjunto da sua obra.
Com Um lugar ao Sol (1984) venceu o Prémio Renaudot. Em 2008, com Os Anos, vence o Prémio Marguerite Duras e é finalista do Man Booker Internacional.
Eu desconhecia Annie Ernaux, mas ao terminar a leitura percebi que a minha "família" tinha mais um membro.
Para pensar, em tempo de pandemia:
"L'élimination totale du risque conduit à l'élimination totale de la vie"
Edgar Morin no Twitter
Sally Rooney
Encontrar um caminho próprio, ser aceite num grupo, vencer desníveis sociais e entender e aceitar um inapelável amor por mais estranho e impossível que ele pareça, são alguns dos tormentos a encarar e vencer durante a adolescência e o tempo de ser jovem adulto.
É sobre tudo isso o livro “Pessoas Normais” de Sally Rooney.
Passado na República da Irlanda, nacionalidade da autora, terra marcada pela divisão de classes e alguma frieza britânica, agravadas pelo catolicismo, este períoda da vida de Marianne e Connell, são contados com grande à vontade e modernidade narrativas.
Apesar do que cada um é, e da quase impossibilidade de mudar, o amor e a amizade podem permanecer poderosos, incompreensíveis e duradouros.
Ao contrário do que pode parecer, não é um livro “levezinho”, mas é um livro que nos leva pela mão, desde a primeira página, a viver este período da vida dos jovens Marianne e Connell , tempo maioritariamente difícil, mas que termina com um sinal de esperança.
Recebeu vários prémios e nomeações merecidos, acho eu.
Uma vez li uma entrevista a um médico, cujo nome não recordo, que dizia esta extraordinária frase:
" A medicina é uma ciência social com um braço técnico".
Talvez seja por a maioria dos seus colegas não entenderem isto que, cada vez mais, oiço as pessoas dizerem: "eu não vou ao médico".
E o cortejo de males, pessoais e sociais, que esta opção pode trazer!
"Rimos francamente, se a piada vem de um tipo do nosso nível. Rimos com deferência, se de um nível superior. E só por condescendência, sorrimos, se vem de um tipo de nível inferior. É que o riso é uma concessão, e nós somos muito ciosos da nossa importãncia."
Vergílio Ferreira
(1916/1996)
A foto é minha mas pode levar